sábado, 23 de outubro de 2010
O porco espinho, Sartre e o inferno
Levei anos para entender a frase “ O inferno são os outros “ do filósofo Jean Paul Sartre até ler o artigo homônimo da professora de Filosofia e Mitologia grega Luciene Felix na revista Visão Jurídica n.º 41.
Pensamos exatamente no inferno quando nossas relações corroem, se deturpam ou se extinguem. Achamos entretanto que o inferno é o outro, aquele que rompemos, que mandamos embora de nossa vida, mas não, ele não é especificamente o inferno.
O inferno é o olho do outro, é o desmascarar de nossas verdades ocultas que não escapolem o olhar do outro e nos revela o íntimo, o âmago. No texto da professora Luciene Felix ela escreve que: “ Sem que possam sequer expiar suas faltas, descobrem o horror da nudez psíquica que os outros lhe evidenciam. Está revelado o verdadeiro inferno: a consciência não pode furtar-se a enfrentar outra consciência que a denuncia, por isso: o inferno são os outros.”
Vivemos numa constante nudez psicológica ao nos relacionarmos no dia a dia com amigos, amores, família, etc. Nos auto-sabotamos, mentimos ou tergiversamos para ocultar nossas deficiências mas não por muito tempo. A intimidade e a rotina vai desgastando nossas máscaras até chegarmos a nudez total. E quando o outro nos aponta a flecha em direção a verdade inerente, o ódio e o ressentimento recendem e o outro passa a ser o nosso inferno.
Diz ainda a Professora Luciene no texto que: “ Os outros são todos aqueles que, voluntária ou involuntariamente, revelam de nós mesmos. Algumas vezes, mesmo sufocados pela indesejada presença do outro, tememos magoar, romper, ferir e, a contragosto, os suportamos. Uma vez que a incapacidade de compreender e aceitar as fraquezas humanas torna a convivência realmente um inferno, o angustiante existencialismo ateu sartriano não nos deixa saída. Sem o mínimo de boa-vontade, não há paraíso possível.” ( grifo meu )
O texto da Professora Luciene se propõe a elucidar a idéia Sartreana de que o homem produz a sua própria essência, “ a existência precede a essência “, e na construção da própria essência, o homem age de má-fé e covardia quando transfere para outrem a infelicidade e o próprio fracasso.
Mediante tal constatação apontada pelo texto, da proposição de Sartre, pergunto: é possível nos livrarmos do inferno do outro?
Para responder a essa pergunta, socorri-me de outro filósofo chamado Arthur Schopenhauer que, no seu livro, “ O mundo como vontade e representação,” livro IV, nos apresenta a metáfora dos porcos-espinhos que contra-põe e atenua o pessimismo de Sartre. Diz o texto in verbis:
“ Um grupo de porcos-espinhos perambulava num dia frio de inverno. Para não congelar, os animais chegavam mais perto uns dos outros. Mas, no momento em que ficavam suficientemente próximos para se aquecer, começavam a se espetar com seus espinhos. Para fugir da dor, dispersavam-se, perdiam o benefício do convívio próximo e recomeçavam a tremer, o que os levava a buscar novamente a companhia uns dos outros – e o ciclo se repetia: a luta para encontrar uma distância confortável entre a dor e a proximidade. “
Se o olhar do outro é o espinho que me espeta a carne, me faz doer e até odiá-lo, a sua ausência também é abandono e solidão. A metáfora dos porcos-espinhos nos faz pensar sobre o preço do olhar do outro e da compensação do calor, quando pensamos que também somos o inferno de alguém.
Livingston Streck
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Como harmonizar liberdades?
ResponderExcluirMais que o olhar, a ausência de instância transcendente na relação com o outro a qual se possa recorrer, faz-nos, imaginariamente, encarnar nos outros o inferno. Todavia, creio que Sartre subscreveria perfeitamente o que diz Rimbaud: J'est un autre. Se a existência é a priori e a essência fruto de decisões, o que nos faria convergir? Não é minha verdade que me revela o olhar do outro. Este põe-me como objeto. Abjeto. Como ser livre e objeto? Como harmonizar liberdades se alguém deseja o corpo do outro? Eis o embaraço da expressão "condenados a sermos livres". O inferno jaz no Eu e, paradoxalmente, no que se julga ponto pacífico.
Os misantropos caminham na corda bamba do convívio com o outro, desconfiados e receosos de levar uma espetada, mas não há dúvida, vez por outra tem que se aproxima em busca de calor humano.
ResponderExcluirEstimados amigos,
ResponderExcluirO paraíso também "são os outros", rs.
Escolhemos! Exceto família, escolhemos.
E, em família, o "sangue" fala mais alto, rs.
É estar em paz. E fica tudo em paz.
beijos,
lu.
"Das Unheimliche": mesmo a família escolhemos; mesmo o mais familiar pode devir estranho. Uma questão de sangue? Sem dúvida. Só não sabemos se este sangue jorra ou flui.
ResponderExcluirQuando se pensa que a verdadeira solidão é a ausencia de si mesmo reflito que se estamos conosco estamos completos. Caberia uma pergunta mediante a reflexão da Luciene e do Ricardo: será que escolheriamos nós mesmos para nos habitar? seriamos nós a nossa própria escolha? Concordo com voce Luciene que se o outro é o inferno, o outro também pode ser o céu. Ainda bem senão estamos perdidos. rsrsrs
ResponderExcluirO céu é o inferno.
ResponderExcluirEscolhemos, sem dúvída. Integralmente? Claro que não. E o que escapa a nossa escolha não é alguma natureza indomável que a precede todavia a consequência da ação.
Se nosso problema se resumisse a um dilema claramente formulado em uma oposição: certo e errado, bem e mal, belo e feio. Céu e inferno, juntos ou separados, viver ou morrer, seria uma maravilha viver. Por isso, o outro, a alteriadade, sempre foi o calcanhar de aquiles da filosofia que se pretende conhecimento.