quarta-feira, 6 de outubro de 2010

CONFISSÃO


Eles viveram mais de sessenta anos casados. Viver tanto tempo assim você conhece o silencio do outro, a sombra do outro, o respirar do outro. Conhece o outro mais do que a si mesmo. E os segredos? É possível ter algum segredo tanto tempo juntos?

Mas ela chegara ao fim. Teria de ir embora depois de tanto tempo dividindo a própria vida. Lá estava ela dentro do caixão bonita e vaidosa. Quando nova, começou a perder os cabelos por algum problema no couro cabeludo, motivo este que intensificou a vaidade para compensar a perda. O cabelo da mulher está para a mulher como o falo está para o homem. Um genital explícito.

De manhã ele se apronta vestindo seu melhor terno e sua melhor gravata para despedir-se de sua mulher. Queria dar o melhor de si para ela mesmo na morte.

Chega a igreja em passos lentos cruzando a porta rumo ao caixão que já está disposto lá na frente. Veria pela ultima vez aquela em que amou durante toda a vida e que lhe dera filhos, netos e bisnetos. Pela primeira vez não haveria uma admiração mútua, nem uma troca de sorrisos, nem mais o diálogo.

Com as mãos tremulas segura a beira do caixão fitando aqueles olhos fechados que tanto viu e tanto foi visto. Toda mão de amor busca sempre a face e não teria sido diferente. Aquelas mãos sulcadas cheias de calos com as rugas do tempo deslizaram aquela face enrijecida e inerte. As lágrimas escorreram lentamente pelos sulcos da face.

Pousa a mão no peito como se fosse necessário saber que o peito jaz em silencio. Olha o corpo dela por inteiro para guardar como última lembrança aquele corpo que tanto lhe deu calor, companhia, amor e palavras.

Derepente ele se abaixa próximo ao ouvido dela. Era preciso dizer-lhe alguma coisa antes que fosse embora. Uma voz rouca e fraca ainda lhe saia da boca misturado a lágrimas quando então pronuncia o nome dela.

Queria te confessar uma coisa Quando tínhamos recém casados aquela pessoa me procurou e você ficou sabendo. Tivestes muito ciúmes e por muito tempo não acreditou no que houve. Eu não falei para você o que disse a ela aquela vez. Não sei por que mas acabei não falando.

Hoje eu quero dizer para você ( as palavras saíam entrecortadas pela emoção, quase inaudíveis ), o que eu disse a ela: fulana, eu fiz a melhor escolha da minha vida e não trairei jamais essa mulher.

Chorou em silêncio enquanto ela dormia com um leve sorriso no rosto, bonita e vaidosa ainda para ele.

Obs: presenciei este diálogo á beira do caixão de minha avó materna

Livingston Streck

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