segunda-feira, 30 de maio de 2011

A MENINA


A casa era feia com aspecto de abandonada mas ela morava lá. Os anos sulcaram sua face profundamente mas seus olhos mantinham um sorriso e um brilho próprios. Parecia que a solidão não a incomodava. Ninguém a visitava exceto a menina da casa 18.

Toda manhã antes de ir para a escola a menina deixava uma flor, uma maça, um biscoito, qualquer coisa que pudesse faze-la feliz. A menina era de poucas palavras. Tinha apenas 12 anos mas já ostentava tamanha compaixão.

A idosa abria o portãozinho velho de madeira suspenso apenas na parte de cima. Ela abraçava a menina com afago e carinho e recebia com sorriso o presente do dia. Havia entre elas uma cumplicidade tamanha que apenas o olhar era suficiente para dizer e ouvir.

Um dia a idosa cochichou bem pertinho do seu ouvido dizendo: alguém na escola faz seu coraçãozinho bater mais forte? A menina ruborizou a face e olhando para baixo acenou com a cabeça que sim. Faz bem meu anjo,disse a velhinha, pois o amor é o único remédio que nos mantém vivos. Aproveite e ame com toda sua vida, seu corpo e sua alma. Doe-se com toda a bondade que tens da mesma forma que és bondosa comigo. Quando tiveres seus filhos eles irão fazer o que fazes comigo. Plante essa bondade no
coração deles.

Então a menina perguntou para a idosa: mas, você tem filhos? A pergunta a pegou desprevenida pois não esperava ouvir essa particularidade de sua vida. Uma lágrima furtiva rolou de sua face e de repente o choro tomou conta dos seus olhos.

Você é muito jovem para entender essas coisas mas tive sim uma menina igual e tão bonita quanto você. Quando ela nasceu não pude criá-la e tê-la comigo então acabei dando para uma família que deu todo o carinho e amor. A única condição que impus era poder morar perto da família para a ver crescendo . Eles aceitaram e desde então acompanhei o crescimento dela ao longe sem que ela soubesse que era minha filha. A vi todos os dias como você vê a mim também.

E como é ver sua filha e não poder dizer nada? Disse a menina. Dói muito até hoje pois a vejo sempre. Mas onde ela mora? Replicou ela. Mora bem perto daqui, bem pertinho.
Vá para a escola meu anjinho. Você está atrasada pois conversamos muito hoje. A menina foi para a escola triste e encucada com aquele mistério.

No dia seguinte ela apanhou uma flor para levar a idosa, como de costume, quando de repente se deparou com um movimento em frente a casa dela. Uma fita amarela isolava a entrada da casa e um carro do IML estava estacionado a porta da casa. De dentro os homens retiravam a idosa inerte e silenciosa sem saber que a menina estava lá para lhe deixar uma flor.

Livingston Streck

quarta-feira, 18 de maio de 2011

NUVENS E COISAS

Preciso falar
Com meu silencio
Nestas noites frias
De fantasmas esculpidos,
Os desejos todos
Encolhidos
No canto da memória,
Uma doce canção
Empareda o coração
No peito
Só,
As nuvens
Brincam de coisas
No céu azul
De silêncio
E não sabem
De nós
Nem da lágrima
Dolorosa
Que cai
Na noite,
A palavra
O último refúgio
Da solidão
De um homem
Que ainda ouve
O grito sufocante
Do peito,
O deslize
De pensar
Que há sempre
Um amanhã
Um amanhã
De nuvens
Que foram embora
E que não voltam
Mais
Para virar coisas
No céu
De silêncio
E solidão.

Livingston Streck

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O piano, a pedra e a redenção


Lembro subitamente de dois filmes que assisti onde o piano é o grande protagonista de ambos os filmes. O primeiro filme chama-se “ O piano “ de Jane Campion e o segundo “ O pianista “ de Roman Polanski.

“ O piano “ me sensibilizou pela ligação do instrumento com a mulher que possuía uma deficiência de comunicação e passou a usar a música para interagir. Como a música é um meio de comunicação pouco entendida, no filme, ela sofre perseguição do seu marido por não entender a necessidade de fazer do piano o seu prolongamento. O filme tem um desdobramento passional, lírico e redentor.

“O pianista” retrata um personagem judeu que habita o gueto de Varsóvia e sofre a perseguição dos nazistas juntamente com sua família. Na fuga, o personagem, um brilhante pianista, esconde-se em meio a uma casa abandonada e de repente é flagrado por um soldado alemão que o indaga e deseja saber quem ele é, o que faz e por que está se escondendo. O pianista então, já debilitado, com barba por fazer, sujo e sem comer há dias, é levado pelo soldado nazista a um compartimento que havia um piano e diz: toque alguma coisa. O piano o redime, a música liga soldado e fugitivo.

No Brasil temos um grande pianista chamado Nelson Freire. Em tempo foi produzido pelo documentarista João Moreira Salles um belíssimo documentário sobre sua vida que não me canso de assistir. Nelson Freire está entre os cinco maiores pianistas de todos os tempos.

No documentário vemos a intimidade quase hermética desse pianista que se comunica mais pelos dedos do que pela própria boca. Um homem de silêncios, de andar nervoso e uma introspecção profunda. Em determinado momento, no documentário, Nelson se recusa a ensaiar em um piano por não ter ido com a cara dele. “ Não gosto dele não adianta, “ disse ele.

Nelson executando o concerto nº 2 de Brahms é um momento de êxtase ouvirmos e vermos seus dedos deslizando sobre o teclado. A certa altura seus dedos parecem não tocar o piano e a música se auto executa como um corpo independente.

Se Nelson estivesse numa ilha com apenas uma pedra, creio que seus dedos tirariam da pedra esse concerto de Brahms. E a música por vezes não pode ser a própria pedra? Schopenhauer afirmou certa vez que ” a arquitetura é música congelada.”

No filme o piano, a personagem faz do instrumento um órgão do próprio corpo e encontra uma forma de viver e amar. O piano a redime. Também ocorre no filme O pianista a redenção do personagem. O piano salva sua vida.

Pode o piano salvar o mundo? Pode a música resgatar o homem da crueldade e da obscuridade? Leio reportagem que os Estados Unidos já gastou mais de 10 trilhões de dólares em uma década combatendo o terrorismo. Num devaneio imagino cada dólar sendo gasto com música e imagino esse mundo infestado de pianos. No lugar de metralhadoras e tanques seria bem melhor pianos e para cada piano quem sabe um Nelson Freire para nos resgatar e nos redimir das trevas que entrincheira mais o homem nessa busca desenfreada do vazio e do nada.

Livingston Streck

quarta-feira, 4 de maio de 2011

BIN LADEN E O DIREITO DE SER SEPULTADO SEGUNDO A PEÇA “ ANTÍGONA “

A morte de Bin Laden conforme está sendo noticiado e da forma como ocorreu, me fez lembrar da tragédia grega “ Antígona “ de Sófocles.

Na peça, Antígona revolta-se contra seu tio Creonte, um tirano que assumiu o poder, por que o mesmo proibiu que Polinices, irmão de Antígona, fosse enterrado de forma digna conforme o costume grego.

Polinices desafiou seu irmão Etéocles e lutou contra ele para assumir o poder em Tebas depois da morte de Édipo, seu pai, mas ambos morreram neste embate. Creonte, herdeiro natural do trono, enterrou com todas as honras Etéocles mas proibiu que Polinices fosse enterrado e decretou a morte quem o fizesse.

Antígona revolta-se então contra seu tio Creonte e o desafia dizendo que vai enterrar seu irmão conforme os costumes.

Osama Bin Laden, terrorista morto pelo exército americano segundo as próprias palavras do presidente Barack Obama, teve destino similar ao de Polinices da tragédia grega. Nenhum interesse tenho eu de invocar dignidade ao insepulto terrorista mas, tão somente, na morte de quem quer que seja, deveria ser respeitado as crenças de cada um para que o costume de um povo não seja aviltado.

Me posiciono de forma contrária ao desfecho dos fatos ocorridos com o terrorista em questão pois acho que o mesmo deveria ser pego com vida e sofrer um processo por atentado contra a humanidade e penalizá-lo com a pena de morte tal qual ocorreu com o ditador Saddam Hussein.

Quem conhece a peça “ Antígona “ sabe que ela desafiou Creonte e foi condenada a morte por cumprir o prometido conforme as crenças locais. Hémon, filho de Creonte e também companheiro de Antígona, morre por protegê-la e por mostrar ao pai a tirania e o abuso do poder a que ele se deixou dominar.

Esta tragédia apresentada por Sófocles é de uma riqueza analítica sobre fatos contemporâneos e possui um lastro filosófico para entendermos os embates ainda hoje decorrentes sobre o que é costume e o que é direito.

O povo americano louva o desfecho e a possível morte do terrorista Osama Bin Laden, digo possível, pois até o momento não foram divulgadas satisfatoriamente as fotos e comprovações mais convincentes do ocorrido.

Entendo a necessidade da catarse americana para vingar a morte das suas mais de três mil vítimas do World Trade Center e do avião que caiu perto do Pentágono mas não concordo com o aviltamento do estado de direito, dos costumes e do processo que uma democracia deve respeitar. O terrorista faz a sua lei. A democracia é feita pelo consenso do estado representado pelo povo através da sua legislatura.

Bin Laden foi jogado ao mar conforme dizem os jornais. Em não havendo corpo, não haverá punição, não haverá a pedagogia e o cumprimento da lei. Apenas a atitude tresloucada de uma vingança catártica que inflamará os adeptos e os seus seguidores a, isto sim, procurar cumprir os costumes a que estão submetidos por sua cultura.

Livingston Streck