terça-feira, 13 de abril de 2010

SOBRE A TRAGÉDIA DO RIO DE JANEIRO: ESTAMOS DIANTE DE UMA FATALIDADE OU CRIME DE OMISSÃO?


No dia 27 de março de 2010 às 00:20 horas o juiz Maurício Fossen leu a sentença condenatória do casal Nardoni, condenando Alexandre Alves Nardoni a pena de 31 (trinta e um) anos, 01 (um) mês e 10 (dez) dias de reclusão e Anna Carolina Trotta Jatobá a pena de 26 (vinte e seis) anos e 08 (oito) meses de reclusão pela homicídio triplamente qualificado de Isabella Nardoni. Ao final da sentença, inúmeros populares vibravam como a um final de campeonato brasileiro com apupos e fogos de artifícios.

No dia 13 de abril de 2010 o site R7 atualiza 232 (duzentos e trinta e dois) o número de mortos em decorrência dos soterramentos nos morros do Rio de Janeiro. Nenhuma comoção popular, nenhuma passeata, nenhum morto em camiseta, nenhum agente eclesiástico se solidarizando com os familiares, ninguém exigindo a punição de culpados nem sequer cogitando se há culpados.

Como operador do direito e cidadão recorri à carta magna afim de verificar se há amparo constitucional a estas vidas que ainda não foram ceifadas pois a legislação nada mais poderá fazer pelas que se foram.

Inicialmente recorro ao caput do conhecido art. 5º. para que possamos relembrar o que o mesmo trata sobre o vida e a propriedade. Assim diz o referido artigo:

“ Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” Grifo nosso.

Tratando do mesmo artigo o Professor Doutor Pedro Lenza, em seu livro Direito Constitucional Esquematizado nos diz o seguinte sobre o direito à vida:

“ O direito à vida, previsto de forma genérica no art. 5º., caput, abrange tanto o direito de não ser morto, privado da vida, portanto, o direito de continuar vivo, como também o direito de ter uma vida digna.” Direito Constitucional Esquematizado, pg. 678.

Quanto ao direito à moradia e ao direito à dignidade humana o mesmo autor profere as seguintes palavras em seu livro sobre a posição constitucional sobre os direitos em questão. In verbis:

“ O direito à moradia foi previsto de modo expresso como direito social pela EC. Nº 26/2000: art. 1º. – O art. 6º. da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 6º. – São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” Grifo nosso.

“ Também, partindo da idéia de dignidade da pessoa humana ( art. 1º., inc. III ), direito à intimidade e à privacidade ( art. 5º., X ) e de ser a casa asilo inviolável ( art. 5º., XI ), não há dúvida de que o direito à moradia busca consagrar o direito à habitação digna e adequada, tanto é assim que o art. 23º., X, estabelece ser atribuição de todos os entes federativos combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.” Direito Constitucional Esquematizado, pg. 759.

Vimos pelas descrições doutrinárias e pelo posicionamento da Constituição que o direito à vida, à moradia e a dignidade humana fazem parte de um mesmo rol de direitos que foram completamente suplantados, esvaídos e inexistentes na proteção dos direitos dos até então 232 mortos contabilizados. Mister lembrar que possuímos uma Constituição rígida de difícil alteração e que o artigo 5º. faz parte das cláusulas pétreas que são as cláusulas inalteráveis. Se temos uma Constituição que protege a sociedade e que obriga seu cumprimento, estas pessoas morreram então pela omissão administrativa?

Senão, vejamos a responsabilidade dos entes federativos. No art. 1º., inc. III da C.F. temos o seguinte, in verbis: “ A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos estados e municípios e do distrito federal, constituem-se em estado democrático de direito e tem como fundamentos: inc. III – a dignidade da pessoa humana.”

A dignidade da pessoa humana como sendo um dos pilares da Constituição Brasileira, é de inteira responsabilidade dos entes federativos, união, estados e municípios. Cabe aos entes anteciparem-se aos problemas da sociedade, provendo meios e recursos para evitar a tragédia, catástrofes e o desmantelamento da paz e da segurança.

A Constituição atribuiu a cada ente administrativo as mais variadas responsabilidades que dizem respeito à vida, à moradia e a dignidade humana. Em relação à União vejamos o que que diz o art. 21, inc. IX e XX da C.F.:

“ Inc. IX- Compete à União: elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;

Inc. XX – instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transporte urbanos.” Grifo nosso.

No artigo 23, inc.IX e X a Constituição estabelece a competência concorrente da União, Estados, Distrito Federal e Municípios nos referidos direitos sociais o seguinte:

Art. 23 – E competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

“Inc. IX – promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;”

“Inc. X – combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos;”

Quanto à atribuição do Município, a Constituição legisla a sua responsabilidade em relação ao solo através do art. 30º. Inc, VIII.

“ Art. 30º. – Compete aos Municípios:

Inc. VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.” Grifo nosso.

A legislação infraconstitucional também é uma ferramenta a serviço do poder público mais especificamente a Lei nº 10.257. de 10 de julho de 2001 chamada Estatuto das cidades. Já no art. 1º, parágrafo único a lei estabelece que:

“ Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.”

Um outro membro do poder público que tem grande responsabilidade nas causas coletivas e individuais é o Ministério Público pois a ele a Constituição Federal o chama à responsabilidade no que diz respeito às seguintes questões envoltas no art. 129º.
Diz o referido art. “ São funções institucionais do Ministério Público:

“ Inc. II – zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;”

“ Inc. III – promover o inquérito civil e ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.”

Neste breve relato vimos as responsabilidades que foram atribuídas pela Constituição Federal ao poder público e aos seus principais representantes e dirigentes. Em relação à tragédia do Rio de Janeiro é de conhecimento de todos a irregularidade dos assentamentos nos diversos morros. É notória a ausência e a omissão do estado quando se trata de cuidar da população que vive em áreas de risco. O mais estarrecedor é ouvirmos dos dirigentes públicos que o grande vilão é a natureza. Ouvi do Prefeito de Niterói Sr. Jorge Roberto da Silveira em entrevista a uma rádio de notícias no dia 13/04 que ninguém condenou os dirigentes públicos quando ocorreu o terremoto no Chile e no Haiti. Que ninguém condena um Presidente por que ocorre um Tsunami. O Sr. Prefeito comparou o deslizamento de uma população vivendo verticalmente em cima de um lixão a um terremoto. Mais fácil e mais cômodo lavar as mãos e passar a responsabilidade à natureza, quiçá a Deus.

Seria propício e pertinente apresentar a legislação a determinado prefeito e a todos os demais que se omitem das suas responsabilidades sociais.

Concluo com a seguinte reflexão a respeito dos 232 mortos do Rio de Janeiro. Se o agente público tem conhecimento dos riscos que estão submetidos uma parcela da população da sua cidade, que se houver uma chuva torrencial, um furacão ou coisa que o valha, e que se não for tomada nenhuma medida de prevenção sabendo-se que a tragédia é iminente e se estabelecer a omissão e o descaso, e ocorrendo os fenômenos naturais, vierem a ceifar a vida de milhares de pessoas, podemos dizer que estamos diante de um crime de omissão? E se estamos diante de um crime de omissão, não é hora da sociedade usar dos instrumentos legítimos para chamar estas pessoas a responderem por suas responsabilidades?

Livingston Streck

Nenhum comentário:

Postar um comentário